Postagens

Mostrando postagens de março, 2012

Lúdico

Por Raquel Abrantes e Rafael Linden* É impressionante como as dimensões parecem maiores, e as escuridões mais negras, e parecem poder nos engolir quando somos crianças. Ao mesmo tempo, há uma admiração pela grandiosidade literal das coisas, que depois aprendemos a conotar no decorrer da vida. Nosso espanto encanta os adultos que nos olham. A tal ponto que insistem em gravar os momentos em que somos mais vulneráveis. Mais tarde, quando nos descobrimos adultos, podemos nos observar nestas fotografias e entender um pouco porque reagimos à luz e às sombras. Adultos não gostam de ser vulneráveis e, por isso, acabamos deixando esses pensamentos infantis para lá. Pra que isso afinal? É o que pensam, mas não dizem. Até que a inocência da prole anule a própria e, assim, seja possível ser lúdico outra vez. *Outros textos do escritor em http://www.umcientistanotelhado.blogspot.com.br/

_ about growing up

Por Flavia Melissa* Quando eu era pequena e me falavam a respeito de um pote de ouro que existiria ao final de todo arco-íris, ninguém disse que existiam cores frias e cores quentes. Ninguém disse o quão geladas elas poderiam ser na ausência do sol, nem quanto poderiam queimar sem uma brisa suave qualquer.   Quando me ensinaram a mergulhar, ninguém se lembrou de me alertar que às vezes a piscina poderia estar sem água. Ou que nas doces águas se afunda mais rápido do que nas salgadas. E que, no mar, a gente não pode engolir água se sentir sede, porque se não morre mais rápido. Me ensinaram que peixe grande com barbatana era perigoso, mas nunca me disseram que golfinho também é grande e tem barbatana, e ai!, que tantos deles passaram por mim e eu fugi, perdida no meu medo. Quando me mostraram que existiam coisas que voavam, tinham asas mas não eram pássaros eu abri a minha boca e não acreditei que, quem quer que fosse que subisse naquilo, poderia voltar são e salvo. Eu sen

No lixo

Joguei no lixo a poeira da semana a casca de banana a garrafa vazia de cana Joguei no lixo o verso que estava perdido o cartão velho de um amigo o sofrimento contido Ali fiquei, e o lixo fitei revivi os poemas antigos os primeiros que queimei e os que ficaram contigo Mas no lixo não estavam as fotografias que restaram preferi o fundo da gaveta até a próxima arrumação. Raquel Abrantes
. Do peito as partes caíram pesadas pontiagudas assim como eu; parto. Raquel Abrantes
Por Polly Di* Quando volto dos pulos e dos passos. Ah! crescida das pernas Destampada das pernas Sem saia que dê. Do que é ponto e já virou samba para o outro demora. para o outro urgência por resposta. para o outro desconforto. Incabedura que extrapola em perna. que dança doçuras, suores. Incabe eu em suas vergonhas e minhas pernas nas suas. *Outros textos da escritora em http://osenhortolere.blogspot.com.br/
. Você não é perfeita Cada imprecisão que comporta Em sua finita luz do dia até a noite gélida e sombria somente por você vale a guerra defender-lhe até o fim, é preciso sua preciosidade não se renega saiba poder contar sempre comigo tanto a sua, quanto a minha todas deveriam ser prioridade ante qualquer outra necessidade conta bancária, status, ladainha Raquel Abrantes
. O olhar da menina parecia abrir as portas da casa, um lugar agora pouco arejado pela vontade esquecida daqueles moradores. Quando chegava, a luz entrava imediatamente na vida dos velhos tios, mostrando que a felicidade pode ser simples. Como uma tarde no campo. Raquel Abrantes

O quarto

Imagem
Este sempre foi meu refúgio. Aqui me encontrava, longe da multidão insandecida, na época primeira da luta, quando o pouco é muito. Também muito me perdia, sem ninguém procurar por mim. Nestes desencontros encontrados, o pano de fundo me acolheu. E o retratei na medida em que precisava dele para continuar, para lembrar de conquistar o que tenho hoje, além do quarto. Raquel Abrantes

A pintura

Deitei meu olhar sobre a pintura que fervilhava em suas cores chegavam a ameaçar minha integridade com sua dose de realismo dissonante em óleo sobre tela Não resisto ao áspero toque das formas e quase danifico o que me atraiu como nos relacionamentos humanos Mas senti que havia algo mais entre nós e isto não poderia ser desprezado; a identificação A pintura existiu por mim. Raquel Abrantes
. dois marcos                     flocos                               neves Raquel Abrantes

Até a areia

Imagem
O vento afastava o suor do meu rosto, escondendo por alguns instantes o pavor excitante de se jogar ao nada, para o todo admirar. E no meu peito batia a insegurança prevista e acelerada que tentava despistar com a beleza da paisagem. A cada passo em direção ao precipício, a respiração ficava mais difícil e penosa até o desespero que me fez hesitar. Pouco tempo tive eu até o voo propriamente, porque nessas horas não vale a pena pensar; apenas sentir. E a lona me levou para além das montanhas, em um belo e sonoro grito de terror e vitória contra o medo de ver a vida de cima. Mas foi o mar que trouxe paz à aventura, pulsante, viva, até a areia confortante da praia... minha pela primeira vez. Raquel Abrantes

Adoniran

Rafael Linden*               Ele entrava no botequim cantando sua versão do Trem das Onze: “Quás, quás, quás, dá um traguinho dum, duru-dum-dum!”. Daí o apelido, pois o nome ninguém sabia. Às onze da manhã, já mal se equilibrava num colchão de ar que flutuava ali pela Rua Real Grandeza. Quando faltava, a esposa do Almirante perguntava ao jornaleiro: “Ô Jarbas, cadê Adoniran? Faz dois dias que sumiu, aconteceu alguma coisa?”. “Não esquenta, Dona Leontina, ele é de ferro. Cachaça não enferruja, né? Ha, ha!”. Dia seguinte, lá estava o Adoniran, trôpego, tirando o chapéu imundo para as senhoras. Era patrimônio do bairro, sustentado pela generosidade pública.             As beatas tinham-lhe horror, mas só oficialmente. Rezavam por ele na Matriz, até porque o bebum lhes era útil. “Viu, meu filho, se você desobedecer seus pais e não estudar, vai acabar feito o Senhor Adoniran!”. Tratamento respeitoso para um ícone do desvio, exemplo bem a calhar para educar a filharada. Mal sabiam.