Bermuda

E ele retomou seu lugar depois de alguns meses. Abigail tinha terminado um namoro transitório na sexta-feira. Fabrício chegou três dias depois... Como se nunca houvesse partido. Ele perguntou sobre a sua bermuda. Estava lá; lavada, passada e guardada na gaveta.

Abigail olhava para seu amor e para a bermuda. Estava feliz com o retorno do dono, proprietário também da sensação que ela sempre esperava. E aquela risadinha no canto da boca recordava ironicamente que a bermuda fora preenchida por outro, amassada por outro, arrancada de outro, por todo o tempo em que Fabrício a abandonara.

A bermuda não caía tão bem em Julio, mas ele se apaixonou intensamente por Abigail e faria qualquer coisa para manter o relacionamento. Até mesmo ignorar sua história com Fabrício. Inicialmente, algumas fagulhas estimularam o casal, com surpresas, declarações e a hipótese de ficarem juntos.

Só que ainda não estava resolvido. Não para Abigail. Ela se contorcia ao ouvir o nome... Fabrício... Sua espinha gelava da nuca ao final do dorso. Sentia-se como uma lápide sendo grafada com o nome do finado. Logo um ataque de comichão confessava seus sentimentos ainda confusos, na incapacidade de tomar uma decisão.

Insensatez que transpareceu inexorável para Julio. É assim que um homem perde o firmamento e deixa de olhar para as estrelas... a insegurança foi depredando progressivamente sua auto-estima. Ele precisava ocupar todos os espaços, antes que outro ocupasse. E seu cuidado excessivo fechou as janelas da alegria para Abigail.

Fabrício retomou seu lugar. Com a mesma instabilidade de Julio, aniquilando a mulher que ele queria. A mulher que habitava Abigail compungia por seu amor, desejara ela nunca ter deixado... não que tenha sido sua opção. Paixão a consumia desde a última iluminação do dia até o adeus avermelhado da noite.

A cada tanto, o sangue de Abigail ganhava componentes de insatisfação, na malograda tentativa de consolidar. Seus ouvidos pediam murmúrios de conforto e seus pés não alcançavam o chão. Os talvezes de uma vida incerta de abrigo, sempre vulnerável à chuva. As evidências iam de encontro ao significado de seu nome, aquela que muda rapidamente de humor, mas sempre traduz fonte de prazer e torna as transformações favoráveis a ela.

Fabrício agonizava em pensamentos sombrios, ardia em febre de ciúmes, friamente calculados por viáveis confirmações. Em elucubrações constantes, desvelou o cansaço da vida, esbaforiu ressentimentos e partiu mais uma vez. A ocasião fez Abigail lembrar da bermuda... e a devolveu, tendo sido o primeiro pertence colocado na sacola.

Em sua gaveta, não havia espaço para bermudas, seja quem fosse o dono. E a peça íntima foi parar na portaria, junto ao resto-das-coisas-dele. As calcinhas ocuparam todo o compartimento do armário, dobradas ao descobrimento de seus bordados. Abigail liberou as assombrações e evaporou as tristezas, acompanhada do insubstituível silêncio de sentir.


Raquel Abrantes

Comentários

  1. "Suave é viver só.'(Ricardo Reis)
    Bjs,amiga!

    ResponderExcluir
  2. Parabéns! Está se revelando como contista. Mas, será mesmo que as assombrações foram liberadas e as tristezas evaporadas, já que um sentir tão pujante mergulhava inexoravelmente na profundez de um silêncio nostágico?

    ResponderExcluir
  3. Nostágico, desculpe a falha. Bjsss

    ResponderExcluir
  4. NOSTÁLGICO. Cruzes!! Não quer sair mesmo esta palavra. rsrsrs

    ResponderExcluir
  5. Dindinha!!!

    As assombrações foram liberadas... mas nunca se sabe quando vamos encontrar com elas de novo... inexoravelmente iremos.

    Beijão!

    ResponderExcluir
  6. Este sim, é uma avalanche de lembranças em páginas de arquivos do msn...
    Logo meu inferno astral acaba e terei uma brecha pra um chopp.

    Beijosssss ;*

    ResponderExcluir

Postar um comentário