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Mostrando postagens de junho, 2009

A rua

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Um dia normal de trabalho continuava na minha semana. Era quase a hora do almoço e, enquanto imaginava o que haveria no cardápio, verificava as desordenações da minha caixa de e-mails. Entre um spam e outro, bocejos me irrompiam até o esticar dos braços. Simples movimento com alto teor de liberdade incorporado. Às vezes precisamos intercalar ilusões às necessidades da vida. Contava tempos sem ver o dono daquela voz... e as perspectivas de reencontro viravam a esquina na minha memória, fazendo um desvio na contramão. Imediatamente meu rosto denunciou as marcas de expressão causadas pelo sorriso. Lembrei de nunca ter considerado as minúcias das ruas paralelas à minha e aqueles crassos e-mails remetiam às vias transversais do meu passado, tencionadas a interditar a passagem. Depois do inesperado chamado, os bocejos descansaram e a disposição assumiu a agenda, seguindo o calor da calçada. A fome de luz não seria suprida pelo cardápio, mas o estômago precisa de algo para digerir. É c

Três segundos

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Um vento gélido transpassa minha pele, enquanto me detenho ao fato testemunhado. Como se no decorrer de três segundos, a vida perdesse o sentido, ou ganhasse. Prévios instantes nos quais pensava eu no olhar vindo daquela direção, se era insolente tentando ganhar espaço em meus devaneios, e me aturdiu, até mesmo me fez cogitar a hipótese de olhar de volta. Isso logo depois de ter encarado meus desafios em relação à fragilidade do meu corpo, em contraste aos sonhos que a imaginação pintou com todas as cores possíveis, não seja esta a questão. De onde vinha aquele medo... não sei exatamente. Sei que me senti desprovida de apoio, além do chão em que equilibrava minhas pernas. Nada podia evitar o tão súbito encerramento do meu capítulo. Tentamos sempre iludir o inevitável, mas eu não tinha esta pretensão. Apenas delineava que não poderia ter sido só isso. Na verdade, poderia, e esta possibilidade corroia minhas possibilidades. Uma a uma. Em tão curto intervalo, lembrei de um mi

Labirinto

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Como a costura de uma meia-calça de antigamente, vai do calcanhar até as nádegas. E das nádegas até o calcanhar. Olhar vertical insinua o desvio da direção já traçada entre as rotas do dia e da noite. A percepção alcança a intensidade supérflua do relance, mas os olhos insistem em retornar, abertos por tremores enfeitiçados. Tenacidade de uma cintura cingida em carmim de outras terras. Lufadas traiçoeiras ameaçam levantar o vestido da razão, dando margem à imaginação das coxas insanamente vermelhas de tecido. Os conúbios mistos disfarçam sua reza, enquanto gravetos são atirados na lareira do ascetismo. Labirinto de emoções empareda a saída pela esquerda, trilha das desrazões, justificadas em um longo decote ocultado. A atração desenfreada entre o positivo e o negativo, o bom e o ruim, o branco e o preto. Sendo o branco a reunião de todas as cores do espectro, e o preto, a ausência de luz. Uma linha tênue divide o horizonte entre o real e o reflexo, como num espelho d’água. Intenç

Insensibilidade

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Visão aérea de infrutíferos campos compelidos ao reinante descaso em toda a sua impessoalidade. Acrobacias inúteis no perímetro do horizonte passam despercebidas no transcorrer de hábitos inertes. Costumes insensatos trancafiavam o vírus do sentimento, nunca antes contagiado. Em sua mais pura inutilidade, o ar raro efeito tem sobre a consciência da respiração. Diafragma dilatado e contraído em movimentos involuntários. Como o pôr-do-sol. Quereres enigmáticos divagam aleatoriamente no oceano de teorias desintegradas. Da cruz retiro a dor, que tampouco tangencia os sentidos encobertos pela capa da alma, vestimenta rudimentar criada pelos alfaiates da resignação, nos moldes das grades carcerárias das emoções. Soslaios se revezam entre o esquerdo e o direito, atrás e adiante, norte e sul, sem bússola para consultar. Imaginando uma rota de fuga do inóspito reino da insensibilidade. Abstrações tornam-se o último refúgio da sanidade, ao lado da insistente neurose disseminada. Indiferente

Acabamento

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Leu em mim toda a história não-narrada, nas figuras imersas em porvir. Desde o será até onde teria ido, acaso as nuvens transpassassem o azul do remoto céu. Alheio a contrastes no cetim, juntou as pontas do tecido bordado (em autoconhecimento). Colcha de retalhos formadores de instigante complexidade. Na beira, foi trazendo consigo todas as alegrias adormecidas nesta cama, pouco a pouco, sem a velocidade do que ignora o horizonte. E entre desenhos e enlevos, pintou sua forma, guardada em algum canto de satisfatórias recordações. Embevecido de indescritível colorido, o tecido experimentou outros tons, degradês crescentes de euforia, ladeando o belo acabamento de uma junção reformulada dia após dia... Raquel Abrantes

Inverno

Olhar vertiginoso cruza minhas esquinas toda vez que a natureza permeia possibilidades. Propostas moradoras de outros países, delimitados pelos espinhos das flores concedidas no efêmero toque de recolher. Alinhavo meus poréns nas suas dúvidas e teço nesta lã o inverno que virá me visitar sozinho, trazendo arrepios pelos quais me aventurei despretensiosamente, na esperança de acertar. Deserto de razões me espreita, curioso atrás da montanha, e vou leve, fugaz, como nunca tivesse estado lá. Calem-se as buzinas enquanto o silêncio predomina a paz que precisa acontecer. Alerto o mar para me receber, inteira, calma, cortante como a luz opaca. Vívida rasgo, vergo e ilumino... o além-de-mim-perceber. Raquel Abrantes