A chave
Enfiou a chave na fechadura, pronto para um novo dia. Um dia agitado, véspera de Natal, muito trabalho em seu comércio e depois a reunião familiar mais importante do ano. Virou a chave, mas o trinco não abriu. Tentou virar e revirar, assim como faz constantemente com seus pensamentos, e não saiu do lugar, o que também costuma acontecer com sua vida. Porque, afinal, são muitas decisões a tomar e, ao considerar as consequências de cada uma delas, fica realmente difícil escolher. Neste caso não havia o que escolher se pensarmos superficialmente. Só que dentro da verdade do momento, ele precisava resolver um problema e tinha que decidir como o faria. A princípio, ainda calmo, tentou retirar a chave, mas havia emperrado e nenhuma posição, nenhum jeito, nem o truque de antes; nada adiantava agora. O telefone e a internet da casa nova ainda não tinham sido instalados e o celular estava com defeito há semanas, problema que postergou resolver por motivos que só o inconsciente pode explicar. Era uma situação paradoxal, porque ele gostava de ficar sozinho, mas naquela data especificamente ele não queria estar sozinho. Talvez o automatismo do trabalho e o encontro com a família o afastassem uma vez por ano da realidade de sua solidão e do avançar de sua idade. Naquele dia, não era um estar só escolhido, era um estar só obrigado, encarcerado, fadado à solidão, como todas as noites do ano. Seu prédio não tinha porteiro, o que eliminava também esta possibilidade de pedir ajuda. Percebia cada vez mais a ausência de opções, e uma angústia começou a crescer ligeiramente em seu peito. Andava de um lado para o outro no corredor do apartamento, passando a mão pelos cabelos grisalhos, coçando a barba branca, e nada podia fazer. Não acredita em Deus. São Jorge, por favor, me ilumine!, disse alisando a imagem estilizada do santo. Enfim, sentou-se. Acendeu uma cigarrilha. A fumaça conseguia sair pela janela, mas ele, não. Ao mesmo tempo em que tentou considerar as vantagens do contratempo – poder ficar em casa em vez de trabalhar loucamente e aturar a chatice de alguns tios e primos – percebeu que os afazeres e os devaneios alheios eram, na verdade, uma vantagem, uma distração de si mesmo. Sozinho ele precisava se encarar. E isso era mais difícil para ele que qualquer coisa. A reclusão corriqueira de sua vida era uma forma de não sentir-se um estorvo, porque, na verdade, ele não aguentava a própria companhia e, por isso, considerava não ser boa companhia para os outros. E fazia do cotidiano uma travessia corrida das horas, para não ter a consciência de seus defeitos e de suas qualidades. Era um acordar mecânico e um dormir entorpecente, que aliviavam o vazio das respostas. O que ele tinha de bom, então, não sabia avaliar emocionalmente. Não atribuía nada a si mesmo. Sem nenhum motivo específico não conseguia se ver; tinha medo de olhar no espelho. E se visse algo mais que não gostasse? Mais defeitos para pesar na balança? Não! Prefiro percorrer a vida. Ou deixar que ela me percorra. Era um ultraje ao bom senso pensar em como ele poderia se agradar. Para isso existem as distrações. Essas, sim, o agradam. A música, os livros, o cinema, o teatro. O intelecto deixa as emoções guardadas, ou vividas de fora, sem olhar para dentro. Foi quando resolveu ler um livro. Mas o que ler? Acabou pegando um Bukowski na prateleira. A partir daquela vida desgovernada do escritor, lembrou das transformações trazidas pelo acaso. Por outro prisma, os imprevistos podiam ser positivos, porque tinham o poder de mudar alguma coisa que talvez quiséssemos sem termos condições de mudar sozinhos. Era uma mãozinha do reflexo do caos. E uma amostra de como o caos pode organizar as coisas.
Raquel Abrantes
Raquel Abrantes
Oi Raquel,
ResponderExcluirMuito emocionalmente racional este texto. Show! Obrigado pelo blog!
"O intelecto deixa as emoções guardadas, ou vividas de fora, sem olhar para dentro."
Equilibrar razão e emoção para colocar pra fora o que aparentemente está guardado.
"Por outro prisma, os imprevistos podiam ser positivos, porque tinham o poder de mudar alguma coisa que talvez quiséssemos sem termos condições de mudar sozinhos."
De forma inconsciente tudo muda para uma direção que não escolhemos. Por outro lado, de forma consciente, podemos realizar as escolhas que pensamentos próprios, despertos por emoção preferencialmente, expressem o que vier do coração.
Saudações,
André.
Obrigada, André! Seja bem-vindo.
ExcluirConcordo com você, o importante é seguir o coração, sempre!
Abraços,
Raquel.
Raquel, você está de parabéns. A leitura é perturbadora. Sofri lendo, como se eu entrasse na pele do sujeito. Me vi quase em pânico. Sua forma de escrever está cada vez mais aprumada; além de prender o leitor, tira dele sentimentos trancados. É um orgulho ser seu amigo! E fã.
ResponderExcluir:) Obrigada, querido! Sua opinião conta muito pra mim. Bjs
ExcluirGostei muito, Raquel.. Me senti na pele do cara e a sua agonia.. Questionamentos infindáveis são perturbadores, assim como as soluções que surgem do nada são deliciosas.. Bukowski foi a sua melhor escolha, com certeza.. Muito sua fã.. Beijos
ResponderExcluir:) Obrigada, amiga querida! Beijos
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