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Vale

Que cheiro pode um vale exalar se as narinas impregnam o odor corrente, abafando a cada minuto os múltiplos aromas ainda por sentir? Que cheiro pode o vento trazer de tão longe, sem deixar pelo caminho as familiares substâncias da fórmula que a mente recria por um instante Que cheiro posso eu disseminar para abalar o ar em mim envolto abrindo canais para a sensação aromática entre químicas nunca antes inspiradas Que cheiro pode o amor reverberar na sua descontinuidade de efeitos passando de perfumado a inodoro como a rosa que encerra seu ato Aroma que se esvai e leva consigo as inatas sensações ainda por conhecer que o marcante cheiro apagou dos ares no vale onde as fragrâncias se anulam. Raquel Abrantes

Vontade

Deixe para lá a vontade, ela de nada sabe; o que tivemos é o futuro do que temos. Passa tudo. Até a vontade. Dedos passam longe da rosa para que sua textura passe longe da epidérmica memória tal qual lápide futura. Olhares sobressaem tão coerentes deveras são na inerte lembrança do não-sentido. O pôr-do-sol acena calmaria... ruídos esparsos na significância apreciada; Suave é o anoitecer. Do precipício ao voo estratosférico, soma pontos a favor a terra flutuante dos singelos prazeres; nem alto nem baixo. Lá, cá, tanto faz apenas contemplo a harmonia. Raquel Abrantes
. Deitei a cabeça na almofada e pronunciei alguns pensamentos. Vi a sombra do lustre no teto, era restrita e esfumaçada, sem força para qualquer destaque. Mas o silêncio me confortava. Fazia o ambiente flutuar entre traços oblíquos, borrões, distorções do presente. Clareava um pouco essa paz. Afinal, as cores também falam... A todo momento precisamos aguçar algum sentido. Raquel Abrantes

zero

as lacunas entram pela veia. Mas o vazio traduz-se por um portal para o incalculável. o zero é uma casa vazia algo reservado para agregar valor nos consente o prosseguimento da contagem por necessidade ou escolha, dependendo do dia. há que o zero não pode ser elevado a ele mesmo, como expoente, num problema paradoxal. expoente zero leva a um e zero a qualquer número é nada Sem solução o zero segue etéreo, eterno, em seu símbolo-corpo Rumo à origem, parte da ausência. Raquel Abrantes
. O que sobro é líquido revolve escorre salgado se espalha arrisca esboços lembra o mar que existe enquanto coisa em si fora as atribuições sentimentais que nada agregam a seu significado enquanto mar avisto sobras de escritos nas areias mas as ondas insistem em desmanchar qualquer reminiscência na inconstância contínua de seu tempo. Raquel Abrantes
. Rugas e tremores da idade Na beleza do tempo que resistiu à vida e na insistência de encontrar sentido nas páginas do jornal no calor da calçada no conforto de um chapéu antigo. Do outro lado da rua o cigarro queima contemplativo, e aquela simples imagem torna o dia simplesmente sublime assim como as páginas do jornal o calor da calçada e o conforto de algo antigo. Raquel Abrantes
. escrevo porque nas letras me vejo nas palavras existo, sendo como sou eu, eu mesma, apareço em frases, versos, parágrafos depende da intensidade da luz como o sol que nasce todos os dias mas pode se ocultar atrás de uma nuvem ou ofuscar o resto do horizonte Raquel Abrantes

Sem mais nem menos

Assim, sem mais nem menos, o som dispersou-se sozinho. Nem uis, nem ais, nada mais. Cada um seguiu seu caminho. Assim, sem mais nem menos, o momento se escondeu entre gestos antigos, se perdeu, Evitou o que anoiteceu. Assim, sem mais nem menos, Da intimidade restou distância, Da saudade ficou ânsia, Do cuidado, inconstância. Assim, sem mais nem menos, Sombra virou o que era vivo. Deixou de arder, sem aviso, Com você e comigo. Em linhas não traçadas Quase planos, quase nada O silêncio se instalou, sabemos Assim, sem mais nem menos. Raquel Abrantes

Queria eu

Queria eu morrer em toda parte Desse assassinato mútuo, delirante, cotidiano Sem pensar que há vida após o tiro Mirado, definido. Preferido. Morte da matéria fraca, tentada a morrer iluminada, a todo momento, Na cegueira imóvel de um instante, por gosto a apurado veneno. Queria eu morrer entre palavras Acentuadas, insensatas, altivas De falas arfantes e instigantes Perante a vontade consumida. Quantas vezes já nos matamos Dessa morte repetida, curtida Esquecendo um no outro a própria vida Crime em que culpados somos. Queria eu morrer torturada Para um instante de realidade infinita Verdade intensa, derramada, De uma morte bem matada. Por que deixar de nos matar, nesta vida, se vida com vida se renova? Sobrevivência é um instinto que venera a vida, e não a boa morte. Raquel Abrantes

Cores e Dores

Era toda a dureza das expressões tipicamente masculinas que arranhava a paz de Linda. Fosse apenas por um olhar faminto, daquela fome comum a homens e mulheres que se desejam, e levem peremptoriamente à formação de um casal, depois uma família. As intenções, contudo, eram embuçadas pelas memórias torrenciais da agressividade do homem. A agressividade da cobiça por sua beleza, que remexia suas entranhas cena a cena daquele dia inseparável de sua existência. Linda dormia com sua camisola de laços cor-de-rosa quando seu tio girou a maçaneta. A luz do corredor gerou estranhamento do sono de uma menina de 12 anos, já entupida de amores cinematográficos, mas ainda confortada pelo urso de pelúcia Geraldo, que velava seus sonhos toda noite. Seus pais viajaram e o tio se ofereceu prontamente para servir de babá pelo período de 15 dias corridos. Linda adorava o tio Fred, que costumava levá-la a passeios, jardins zoológicos, parques de diversões e circos desde sua primeira infância. Frederico